domingo, fevereiro 27, 2005

Esta semana:

Funk Como Le Gusta - F.C.L.G. (2004)*



Que a lógica de mercado é injusta todo mundo sabe. Bandas são criadas, jabás distribuídos e programas de domingo enfiam goela abaixo a nova sensação do verão. E, de certa maneira, somos obrigados a engolir o velho-novo som das paleozóicas bandas do cenário brasileiro e mundial e outras tantas besteiras. Entretanto, em momentos de rara sorte, encontramos bons trabalhos que muitas vezes são simplesmente ignorados por quase todos, talvez por desconhecimento ou comodismo. Independentemente da causa, fato é que não vemos a luz no fim do túnel por estarmos de olhos fechados, e se continuamos a engolir besteiras, a culpa é nossa.

Então, não por acaso, poucos conhecem o Funk Como Le Gusta. Banda paulista formada em 1998, ainda no mesmo ano ganhou certa notoriedade devido aos shows que fazia às quartas-feiras num local chamado Espaço Anexo, onde ocorriam as mais variadas "jam-sessions" com nomes do calibre de Marcelo D2, Dj Marky, Daúde, Thaíde e Dj Hum, Sandra de Sá e Otto. Contando com 12 músicos, a big-band sempre fez um som tendendo ao funk e ao groove, misturando a eles elementos latinos. Não demorou para que fosse lançado o primeiro trabalho, e em 1999 "Roda de Funk" veio ao mundo contando com participações de Fernanda Abreu e Black Alien do Planet Hemp. Mas dada a pouca divulgação, o disco não recebeu o reconhecimento que merecia.

Seguindo os passos de seu antecessor, o novo trabalho da banda, intitulado apenas “F.C.L.G.”, foi lançado em 2004, mas até agora foram poucos os comentários a seu respeito. Durante o período entre um disco e outro, a banda passou por alterações em sua formação que, por sua vez, acabaram mudando também o processo de gravação. A principal diferença técnica entre os trabalhos é a maneira pela qual foram gravados. Muito embora sejam mínimas as diferenças, "F.C.L.G." foi registrado de maneira convencional, sendo gravado um instrumento de cada vez; "Roda de Funk", como propõe o próprio nome, foi gravado ao vivo, numa roda feita pelos músicos no próprio estúdio. Acontece que depois de terminada a primeira música deste novo trabalho, uma constatação é naturalmente feita: as pequenas diferenças técnicas não refletem as mudanças pelas quais passaram o som da banda.

Mesmo mantendo ritmos dançantes como funk, groove e o samba-rock, este novo trabalho traz algumas inovações ao som da banda. A introdução de elementos eletrônicos talvez possa ser apontada como uma das melhores - e até esperadas - surpresas deste novo álbum. Logo na faixa que abre o disco, "S.O.S", há pequenas linhas eletrônicas que fazem o acabamento da música; em "Vertiplano" são as eletrônices que guiam a canção por seus quase quatro minutos. Ou seja, muito antes de transformar o som da banda, este novo elemento deve ser visto como uma possibilidade a ser explorada. E temos aqui um bom começo. Mas não só a música eletrônica ganhou espaço na salada musical da banda. Para dar um sabor diferente, o choro (!) é também um novo elemento inserido neste trabalho, mesmo sendo mais influência do que tendência. Antes de gastar palavras e mais palavras tentando explicar como funciona tal fusão, o melhor mesmo é indicar a faixa "Aos trutas", que, além de substituir qualquer explicação, é uma da melhores do disco.

Os ritmos latinos, que desde os primeiros shows era característica marcante da banda, podem ser encontrados em "Latina", segunda faixa de "F.C.L.G." O funk, é claro, está presente em todo o disco, mas em intensidades e maneiras diferentes. Em "Somos do funk" e "Tá chegando a hora" há uma levada mais calma do gênero, enquanto "Drive In" e "Besame Mama" são mais dançantes - sendo que esta (música de Mongo Santamaria) possui elementos latinos que lembra o CD anterior. Da mesma maneira, o samba-rock de Jorge Ben Jor continua ainda presente no som da banda, e "A Nêga e o Rebolado" deixa tal afirmação mais que provada.

Quer dizer, o túnel existe, e a luz está lá, mesmo que não a vejamos. O importante é busca-la. Sorte de quem descobriu o Funk Como Le Gusta antes, sorte de quem descobriu agora, pois a escuridão já não é mais a mesma. Por isso, mesmo que seu gosto não aceite muito bem o funk ou o groove ou o samba-rock deste "F.C.L.G.", ele vale a pena apenas pela descoberta e reabastecimento da esperança de um mundo musicalmente melhor.

*Resenha publicada no site Poppy Corn

domingo, fevereiro 20, 2005

Esta semana:

Cat Power - The Covers Record (2000)*



Somos influenciados todos os momentos de nossas vidas, em múltiplos sentidos. Não há como escapar, pois muito antes de nós já existiram outros, e mesmo que os tempos mudem constantemente, há sempre algo que fica e nos marca. Em se tratando de arte, então, a intensidade é ainda maior. Na verdade, pensar em música e não pensar em influência é uma tarefa, no mínimo, ingrata, pois não levará a lugar nenhum. Portanto, e sabendo disso, alguns artistas resolvem prestar homenagens aqueles que contribuíram para sua formação, e mesmo sendo tal coisa um clichê com 'c' maiúsculo, há quem consiga fazer disso algo interessante. São poucos, mas existem, mesmo que por detrás de um pseudônimo.

Chan Marshall, também conhecida como Cat Power, assim como tantos outros artistas, resolveu prestar uma homenagens aqueles que, de certa maneira, acabaram influenciando sua carreira. Não seria muito difícil adivinhar alguns nomes que entrariam na lista de influências, por isso não é este principal ponto de "The Covers Record", o quinto disco da cantora de Atlanta. A capacidade de Cat Power de se apropriar das canções é o que mais chama a atenção neste disco. A transformação promovida em "Satisfaction", dos Rolling Stones, por exemplo, é tão bem feita que, apesar de não lembrar em nada a versão original, é tão boa quanto aquela. Na verdade, acaba se tornando uma nova canção, e tal fato acaba distanciando todos aquelas narizes torcidos que surgem quando o assunto é música cover, principalmente de nomes como Bob Dylan, Velvet Underground ou mesmo Mick Jagger & Cia.

Com apenas um violão, pianos ocasionais e sua voz melancólica, Cat Power busca suas influências no gênero que é a base de sua música: o folk. Não sem querer, então, o violão é onipresente por todo o disco, assim como músicas de Michael Hurley - figura carimbada da famosa cena folk de Greenwich Village -, ou Moby Grape - banda californiana da década de 1960 que, muito embora estivesse fortemente vinculada ao psicodelismo, trazia influências do folk e blues. Há espaço para nomes mais conhecidos do grande público como os acima citados Dylan ou Velvet Underground de Lou Reed.

É claro, sendo ou não de nomes conhecidos, as canções, após passarem pelas mãos de Cat Power, se tornam dela. Por isso, a grande sacada do disco é ouví-lo não como um disco de covers, como propõe o título, mas como um disco da própria Chan. Canções como "Kingsport town" e "Paths of victory" perdem a voz anasalada de Dylan e ganham os contornos delicados da voz de Marshall, assim como a própria "Satisfaction", dos Stones ou "I found a reason", do Velvet Underground. De Michael Hurley, Cat Power gravou "Troubled waters" e "Swee dee dee", ambas do álbum "Armchair Boogie", lançado pelo cantor em 1970. Do quinteto Moby Grape foi escolhida "Naked if I want to", do disco lançado em 1967 intitulado apenas "Moby Grape", primeiro da banda. Nomes como Nina Simone e Phil Phillips & the Twilights, proeminentes na década de 1930, também aparecem neste trabalho, fechando o álbum.

Há um ponto curioso e um emocionante neste "The Covers Records". O ponto curioso é a música "In this hole". Apenas no piano, é, com certeza, umas das melhores faixas do álbum, entretanto, diferente do restante do disco, esta é uma música da própria Cat Power, que faz parte do disco "What Would the Community Think", lançado em 1996, e responsável pela primeira grande exposição da cantora e compositora. O ponto emocionante é a interpretação de "Red apples", música do Smog, pseudônimo de Bill Callahan, um dos nomes mais chamativos do mundo alternativo lo-fi da década de 1990. Conhecido por seu minimalismo e melancolia, não haveria melhor escolha de Cat Power para o repertório de covers. "Red apples" é apenas voz e piano para versos como "I slept in her black arms/For a century/She wanted nothing in return"

"The Covers Record" é, em poucas palavras, a homenagem de Cat Power a todos aqueles que de alguma maneira a influenciaram. Até Chan Marshall recebe sua homenagem, afinal, é uma das influências mais importantes para Cat Power, sem dúvida. Cada canção deste "Covers records" é uma homenagem simples, suave e melancólica, mas, antes de tudo, original, pois não é para qualquer um se apropriar de clássicos com tamanha personalidade. É para quem pode.

*Resenha publicada no site Dying Days

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

Extra:

Nirvana - From the Muddy Banks of the Wishkah (1996)



Este não é o primeiro disco póstumo do Nirvana. Lançado em Novembro de 1994, o "Unplugged in New York" foi o primeiro registro da banda lançado após a morte de Kurt Cobain em Abril do mesmo ano. Mas não é surpresa para ninguém que assim como este disco, muitos outros chegarão ao público, e a caixa “With the Lights Out” não me deixa mentir. Já foi comprovado com pessoas como Elvis ou Lennon que a rentabilidade aumenta muito mais após o falecimento do membro mais saliente da banda, e que o status de ídolo fica quase inabalável e, principalmente, intocável. Então, nada melhor do que lançar discos com vendas garantidas. É só colocar o nome do elemento ali, algumas músicas conhecidas uma ou duas inéditas ou regravações ou sobras de estúdio e temos um ótimo negócio, pois lançamentos assim não vendem apenas o disco lançado, mas toda a discografia do artista ou da banda da qual fez parte. Exemplos? “Elvis 30 #1 Hits” , John Lennon Accoustic, e o próprio Nirvana com a coletânea que tinha como chamativo a inédita "You Know Your Right".

Assim, ao nos depararmos não apenas com "From the Muddy Banks of the Wishkah", mas com qualquer outro lançamento póstumo, é importante ter em mente que pode ser uma armadilha, e que nós, frágeis fãs, somos presas fáceis. Quem não resistiu e comprou este disco do Nirvana entende o que quero dizer. A concepção do trabalho começa pelo título. Uma tradução aproximada seria "das margens lamacentas de Wishkah", sendo que "Whishkah" é um rio que passa por Abeerden, cidade natal de Cobain. Ou seja, o disco em mãos nos levará do passado lamacento da banda até o mar aberto no qual chegou. Se navegar é preciso, este disco é um exemplo de como vencer as tormentas da industria fonográfica, saindo do então inconstante underground para adentrar as águas aparentemente calmas do mainstream. E se esta é a proposição do disco, ele cumpre com o que é prometido. Todavia, qualquer um poderia fazer o trajeto da banda sem a necessidade de um disco especificamente para isso. Bastaria colocar "Bleach" para rodar e só sair do quarto após a última nota de "Where did you sleep last night", do Unplugged. Por isso, pelo menos uma recompensa por encarar o trajeto do disco deveríamos ganhar.

Entretanto, o prêmio é mínimo. "From the muddy..." é, em poucas linhas, um apanhado de canções ao vivo já conhecidas da banda. Seguindo a proposição do título, há "Intro", "Polly" e "Breed" de 1989. Ou seja, vamos mesmo das origens da banda até seus dias finais, mas pelo caminho mais seguro. Para gravadora, é claro. De início podemos até acreditar que teremos grandes surpresas pela frente, pois o disco começa com uma passagem de som cheia de gritos e distorções, mas dura pouco mais de cinqüenta segundos e só. À partir daí nos deparamos com músicas mais do que conhecidas, e mesmo nestas versões ao vivo elas não fogem muito da original. "Lithium", "School" e até "Smells Like Teen Spirit" entram nesta primeira parte do disco, para (ingrata) surpresa daqueles que sabem o pé no saco que se tornou "Smells like..." após várias e várias repetições diárias quando do lançamento de Nevermind. Para não dizer que esta é uma opinião pessoal, sugiro que assistam o vídeo "Live, Tonight, Sold Out", onde o próprio Cobain se nega a tocar a canção, ou a brincadeira que ele faz no famoso programa britânico "Top of the tops", cantando-a como se cantasse ópera. Mesmo a banda estava de saco cheio de "Smells Like...".

A segunda parte do disco começa com algo animador. A nona faixa do disco é a oficialmente inédita "Spank Thru", uma velha composição de Cobain que perdurou toda a carreira da banda. É uma daquelas músicas que mesmo não estando entre as melhores, seu compositor tem grande apego por ela. Distorcida ao melhor estilo Nirvana, com certeza agradou muitos fãs que não a conheciam, visto sua presença em alguns poucos "bootlegs", numa versão não tão pesada quanto a que consta neste disco, gravada em Roma, durante a turnê de Nevermind. Ânimo restabelecido para uma seqüência "In Utero" de "Scentless Apprentice", "Heart-Sharped Box" e "Milk it". Boas músicas de estúdios nem sempre são boas músicas ao vivo, mas dado como "In Utero" veio ao mundo, não haveria maneira destas canções saírem ruins numa apresentação ao público. Elas preparam bem os ouvidos para "Negative Creep", uma das mais pesadas da discografia da banda.

Quase no fim há mais uma surpresa ainda. A famosa "Polly" voz e violão de Nevermind, que também já foi ao extremo oposto em "Incesticide" com guitarras e baterias em altíssima velocidade, ganha aqui um meio termo. A gravação foi feita em 1989, com Chad Channing na bateria, e surpreende ao mostrar que uma simples música pode ter variações, e que apesar das mudanças, mantêm sua idéia original. Na seqüência estão "Breed" e a porrada "Tourette's" até que "Blew" começa a tocar. "Blew" foi o primeiro single do Nirvana lançado pela Sub Pop, e dependendo da vendagem, a banda assinaria ou não um contrato com a gravadora. Voltamos, então, ao início. O ciclo se encerra. O disco também. Uma viagem pouco emocionante, é verdade, mas válida. Se a preguiça apertar, ouça este "From the Muddy Banks of Whishkah" e navegue por este rio chamado Nirvana. Se não, há pelo menos cinco bons discos para acompanhar de perto os cincos anos de expedições musicas lideradas pela banda de Seatlle.

Boa viagem.

domingo, fevereiro 13, 2005

Esta semana:

The Arcade Fire - Funeral (2004)



Nos primeiros momentos são os aspectos teatrais que chamam a atenção em "Funeral", álbum de estréia da banda canadense "The Arcade Fire". Não apenas na performance, mas principalmente pelas histórias contadas em algumas músicas, que nos dá a sensação de estarmos frente a um palco onde atores encenam pequenas peças. Entretanto, após as inevitáveis repetições do disco, outras características marcantes do som do grupo são percebidas, e aquela primeira impressão dá lugar a algo maior e mais tocante. O pop é por excelência catártico, mas este "Funeral" consegue ir além, e, por incrível que pareça, apenas propõe problemas, mas não os resolvem - mesmo sendo a resolução o mais esperado por grande parte do público que, acostumado com um produto final redondo, talvez estranhe um pouco este trabalho.

Formado pelo casal Win Butler e Régine Chassagne, além de Richard Parry, Tim Kingsbury e William Butler, "The Arcade Fire" é mais uma banda que se une ao batalhão cada vez maior chamado "novo rock", no qual nomes como Strokes, Franz Ferdinand e White Stripes podem ser colocados na linha de frente. Lançando mão de texturas que se assemelham tanto a novata Interpol quanto o experiente Echo & The Bunnymen, a banda não poupa instrumentos ao longo das dez músicas que compõe este álbum de estréia, marcado pela morte de parentes dos integrantes durante a produção, e não por acaso intitulado "Funeral".

A maioria das músicas extrapola algumas obviedades pop e buscam não apenas sons diferentes, mas melodias complexas e situações imprevisíveis. Grande parte delas tem como característica o fato de serem crescentes, ou seja, começam tranqüilas, com vocais graves e contidos, mas ao se desenrolarem tornam-se enormemente poderosas, fazendo com que os vocais de Win Butler, antes tímidos, dominem o ambiente. "Neighborhood #1 (Tunnels)" é um exemplo desta característica, assim como "Crown of Love", na qual o tal crescente aparece na união entre o instrumental e a voz, e o desfecho é tão inesperado que no mesmo instante em que quase tira o encanto da música, causa uma estranheza apaixonante.

Entretanto, são nas canções mais calmas que percebemos a capacidade criativa da banda. Há uma enchente de instrumentos e sons que, longe de se confundirem, criam a atmosfera exata para que as vozes de Win Butler e Régine Chassagne arrebatam os ouvintes. "Une Annee Sans Lumiere", cantada parte em inglês, parte em francês, é tão capaz de emocionar com sua leveza pop quase hipnótica quanto "Neighborhood #4 (7 Kettles)", igualmente construída sobre um violão simples e criativo. "In the Backseat", faixa que fecha o trabalho, é uma peça única. Cantada por Régine, a sutileza da voz nos primeiros minutos carrega a música até seu ápice, no qual violinos, guitarras e vocalizações não pedem licença para derrubar aquela lágrima que ficou presa durante os quase cinqüenta minutos de "Funeral".

À parte o lado musical, são as letras o ponto chamativo. Por trás das melodias, da voz sinceramente aguda de Win Butler e dos backing vocals de Régine Chanssagne, esconde-se uma proposição interessante. Este não é um disco de respostas. Muito pelo contrário, propõe perguntas e questionamentos sobre os mais diversos assuntos, sempre nos colocando em situações contraditórias, e nunca indica uma conclusão. Mesmo que despropositadamente, "Funeral" nos dá apenas as partes contrárias de um mesmo assunto, deixando para nós a resolução destas oposições.

São colocadas duas idéias opostas para que a partir do debate entre elas se encontre uma nova idéia, uma síntese. Por todo este álbum o “Arcade Fire” nos mostra situações dialéticas: a vizinhança vista em pelo menos quatro canções invariavelmente nos remete a situações de solidão; em "Neighborhood #3 (Power Out)" e "Wake Up" a contraposição entre jovens e adultos é feita quase explicitamente; verdade e mentira se encontram em "Rebellion (Lies)"; e mesmo a contraposição de línguas diferentes pode ser vista nas faixas "Une Annee Sans Lumiere" e "Haiti", nas quais inglês e francês dividem a letra. Todavia, em momento algum a banda diz qual é a síntese encontrada, e este é o segredo do disco. A catarse da primeira audição dá espaço a outra mais forte justamente por encontramos nossas próprias sínteses. E mesmo aqueles que estranhem esta proposição poderão se emocionar, pois apenas os arranjos já valem o disco, e elevam o “Arcade Fire” ao posto de mais novo membro da linha de frente do novo rock.

quarta-feira, fevereiro 09, 2005

Extra:

Nirvana - MTV Unplugged in New York (1994)



O formato acústico criado pela emissora MTV teve sua primeira edição em 1989, com a participação da banda britânica Squeeze, além dos convidados Syd Straw e Elliot Easton, da banda "The Cars". A idéia surgiu após uma apresentação de Bon Jovi e Rithcie Sambora no MTV Music Awards de 1989 tocando apenas com violões o então sucesso "Wanted Dead or Alive", e desde então grandes figurinhas do pop mundial se renderam ao formato que, no mínimo, é lucrativo. Mas, deixando de lado o dinheiro, temos apresentações antológicas no unplugged MTV, como a de Bob Dylan em 1995 ou a do Kiss, em 1996, que reuniu no mesmo palco Ace Frehley, Peter Criss, Paul Stanley e Gene Simmons após dez anos. Entre estas, não há como deixar de fora a apresentação do Nirvana, não apenas por ser a última performance televisiva de Kurt antes de sua morte, mas principalmente por sua qualidade musical.

O pensamento que rondava a cabeça de Cobain quando da gravação do programa era quase o mesmo da gravação de "In Utero": o Nirvana é uma boa banda, independente de produtores ou facilidades de estúdio. Se em "In Utero" o intuito era provar que o Nirvana ia além do sucesso óbvio de Nevermind, neste unplugged a meta era mostrar que a qualidade musical da banda estava muito além do que as poucas baladas de sua discografia. Para isso, o primeiro passo foi escolher para o repertório do show músicas que possibilitavam alcançar tal objetivo. Passeando por toda a discografia, há neste disco "About a girl" do "Bleach", "Come as you are", "Polly", "On a plain" e "Something in the way" do Nevermind e "Pennyroyal Tea", "Dumb" e "All apologies" de In Utero. O ponto em comum desta seleção está no fato de todas terem potencial para serem gravados voz e violão e ainda assim mostrar a capacidade não apenas musical, mas de se tornarem boas canções, tristes e melancólicas.

Outro ponto importante deste acústico é as participações especiais. Da mesma maneira que a banda se negou a tocar os grandes sucessos neste show, também optou por convidados que não estivessem sob os flashs. Os boatos de Eddie Vedder como convidado logo cederam lugar a confirmada presença do Meat Puppets, até então quase-desconhecida banda do Arizona. E eles participariam não apenas como convidados nas músicas do Nirvana, mas tocariam três canções próprias: "Plateau", "On me" e "Lake of fire", todas do disco "Meat Puppets II" de 1983. A psicodelia com uma pitada country que marcava o som do Meat Puppets, na voz de Kurt, ganhou um toque tão pessoal que mesmo ainda contendo as velhas características, eram outras canções, mais introspectivas, mais fortes. Há ainda mais três outras covers, "jesus don't want me for a sunbeam", música da banda Vaselines, se não a mais, uma das favoritas de Cobain, "The man who sold the world", do camaleão Bowie, escolhida por Kurt como devido a uma certa identificação com a letra, e "Where did you sleep last night", canção pertencente a Leadbelly, músico de folk da década de 1930-40, que originalmente intitulou esta canção de "In the Pines" (a mudança de título foi feito por Cobain).

A fixação de Kurt por Leadbelly (Huddie William Ledbetter - 1885 1949) aconteceu quando ele descobriu a biografia do músico. Preso algumas vezes, o cantor e guitarrista viajou grande parte do sul dos Estados Unidos tocando blues, work songs (músicas de trabalho escravo) e outros estilos. Descoberto pelo pesquisador John A. Lomax, Leadbelly gravou suas primeiras canções ainda na penitenciaria de Louisiana, gravando também seu nome na história da música negra norte americana. A primeira gravação que Cobain ouviu da música foi quando Mark Lanegan, vocalista do extinto "Screaming Trees", a gravou para seu primeiro trabalho solo. Desde então Kurt criou uma admiração tão grande por Leadbelly que dificilmente "In the pines" não faria parte deste acústico. E mesmo sendo uma canção desconhecida do grande público, principalmente para os fãs do Nirvana, ela faz por merecer estar no disco, principalmente na função de encerrar o álbum/show. Depois de quase uma hora de músicas que mexem com sentimentos dado o nível de sinceridade alcançado por Cobain, o suspiro que antecede o fim de "Where did you sleep last night" é a chave de ouro. Nada mais poderia ser feito depois daquilo.

Abraçado por uma atmosfera lúgubre, com flores, velas e iluminação em tons de azul e roxo, todas as canções, da ingênua e direta "About a girl" até depressiva "Something in the way" ganham uma carga emocional muito forte. Se a idéia de um acústico é mostrar o artista como ele realmente é, o Unplugged Nirvana cumpriu o prometido. Aquelas complicações na vida pessoal de Cobain vistas em "In Utero" cresceram exponencialmente no espaço de um ano, e culminaram neste disco de maneira tão sincera que interpretações de músicas como "Pennyroyal Tea" ou "Lake of Fire" são de emocionar mesmo que não simpatiza muito com o grupo. Muitas canções mantêm sua forma original - mesmo as covers -, por isso a interpretação de Kurt pesa tanto em um disco como este. Sim, através destes parâmetros o Nirvana parece ser banda de um homem só, mas não é por está linha que caminha o disco.

Muito embora haja canções como "Pennyroyal Tea", cantada apenas por Cobain, "About a girl" é quando percebemos que Dave Grohl não é apenas um bom baterista para músicas pesadas, mas que sua sensibilidade ultrapassa os andamentos duplicados, chegando a leves arranjos como na primeira música deste acústico. Na cover do Vaselines, Krist abandona o contra-baixo e assume o acordeão; além do trio, o disco conta com a participação do guitarrista Pat Smear, que vinha acompanhando a banda na turnê de "In Utero", e Lori Goldston no cello em oito faixas. Quer dizer, a interpretação de Kurt nos vocais é de fato peça fundamental para o disco, mas não única. E se o álbum alcança um padrão de qualidade realmente alto, se deve ao conjunto, e não a um ou outro elemento.

"Nirvana - MTV Unplugged in New York" foi lançado postumamente em 1 de Novembro de 1994, sete meses após a morte de Cobain. Exaustivamente passado pela MTV, o disco acabou marcando o fim da carreira da banda, e dando início a um processo de cultuamento que se estende até os dias de hoje. Prepulsores de um estilo, desbravadores do mainstream ou um bando de vagabundos que deram sorte? No fim das contas, nada disso importa. Se quiseram provar que tinham qualidade, melhor prova do que este unplugged não há; se quiseram ou não marcar uma geração, o fato é que conseguiram, mesmo que Kurt faça suas as palavras dos Vaselines, dizendo que "Sunbeams are never made like me".

terça-feira, fevereiro 08, 2005

Maquinário pela internet:

* No Poppy Corn desta semana foram publicadas as resenhas do novo disco do Charlie Brown Jr. e Funk Como Le Gusta. Quer ver? Aqui.

* Está saindo no Whiplash as resenhas do Nirvana publicadas aqui no Maquinário. Vale visitar.

domingo, fevereiro 06, 2005

Esta semana:

Os Paralamas do Sucesso - Os Grãos (1991)



"Os Grãos" é, com certeza, um dos discos mais desconhecidos dos Paralamas do Sucesso. E razões para isso não faltam. Seja pela economia do país na época ou pela estranheza causada pelo álbum aos fãs do som mais conhecido da banda, o problema é que um bom disco como este passa longe das prateleiras dos fãs menos persistentes, e, muito embora digam o contrário, esta é uma perda considerável. Neste álbum encontramos um Paralamas que poucas vezes vimos após este trabalho, e esta é sua caracterísca mais importante. Entretanto, indo mais a fundo no álbum, encontramos muito mais do que mero experimentalismo.

O trio estava no fim da turnê do disco "Big Bang" (lançado em 1989) quando lançou o disco "Arquivo" (22 de Dezembro de 1990), esticando a turnê para o incrível número de 120 shows. E exatamente por este excessivo número de shows, quando perguntado sobre o próximo álbum, Herbert respondia que ele seria literalmente de estúdio, lançando mão de todas as possibilidades que isto pode trazer. Indo além, por vezes ele afirmou que o disco poderia ser levado para um lado mais experimental, diferentemente do dois discos anteriores. Com a turnê encerrada, os Paralamas se trancam no estúdio com o produtor Liminha e só saíram de lá em meados de 1991, com "Os Grãos" debaixo do braço. Todas as previsões das entrevistas de Herbert se confirmaram, e do grande público que acompanhava a banda, apenas uma parcela aprovou este novo trabalho, distante de tudo o que a banda havia apresentado até então.

Discussões e repercussões à parte, o disco é um dos mais interessantes da carreira da banda. A primeira faixa - "Tribunal de bar" - é uma mistura até certo ponto exagerada de samplers e outros sons que ecoavam pela cabeça de Herbert. Na verdade, a maior parte da crítica na época, além de descer a lenha no disco, disse que este era um disco de Vianna, tendo Bi e Barone como músicos de apoio. O disco continua com "Sábado", uma música sobre o tema "coração-quebrado" no estilo Paralamas que já conhecemos. "Tendo a lua" é uma das melhores composições do trabalho: letra simples, e o arranjo, que por mais experimental que possa ser, passa a atmosfera da música, singela, quase confessional. (Uma curiosidade: a frase mais bonita da faixa - "O céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu" - não é de Herbert, mas estava num dos bilhetes que ele de fato jogou fora, como conta a música).

Outras faixas que chamam a atenção no restante do disco são: "Carro velho", que possui uma levada "Olodum" - já trazendo ao público a recém nascida "Axé music" - e, segundo o cantor, teve como inspiração a música "Used cars", de Bruce Springsteen no disco Nebraska; "Vai valer" é uma composição feita à partir de colagem de frases, estilo popularizado por Carlinhos Brown e encontrada na discografia dos Paralamas em músicas como "Cagaço" ("Severino" - 1994) e "Uma brasileira" ("Vamo batê lata" - 1995); "Trac Trac" - é uma cover do argentino Fito Paez, que serviu como porta de entrada ao mercado latino; "A outra rota", balada violão/piano que possui uma das letras mais bonitas do disco; e, fechando o disco, "Trinta anos", música sobre o tempo e sobre a passagem de Herbert aos trinta.

Nem é preciso dizer que este é um dos discos que menos vendeu (100 mil cópias, ganhando apenas de "Severino" - 55 mil cópias) em toda a carreira do trio. Não há como culpar o período político, a crítica ou o experimentalismo da banda, pois todos contribuíram um pouco para que tal coisa acontecesse. Entretanto, "Os grãos" é um dos mais curiosos trabalhos da banda, mostrando um Paralamas que você já conhece de um jeito que você nunca viu. De certa maneira, justiça para com o disco foi feita pela banda quando incluiu no set do Acústico MTV as faixas "Tendo a lua" e "Vai valer". Por isso, deixe de lado a preguiça ou o medo e escute "Os grãos", faixa a faixa. Talvez soe estranho numa primeira vez, mas continue, pois aí sim, "vai valer, então, vai valer".

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Extra:

Nirvana - In Utero (1993)



A fama do Nirvana alcançava altos níveis quando a necessidade de um novo disco de músicas inéditas se fazia presente. Na verdade, esta necessidade já era realidade há algum tempo, e por isso mesmo foi lançada a coletânea "Incesticide", em 1992, a fim de acalmar os fãs mais impacientes. Funcionou, mas não por muito tempo. Músicas inéditas do Nirvana pós-Nevermind eram esperadas, e mesmo que sobras de estúdios do início da carreira alegrasse colecionadores, a curiosidade de ver por quais caminhos a banda iria se enveredar era muito maior. Entretanto, por volta de 1993, o estado do vocalista - e agora ídolo - Kurt Cobain já não era dos melhores, agravado principalmente pela ultra-exposição causada pelo disco de "Smells Like teen Spirit".

Contradições e debates à parte, o sucesso incomodou não apenas a banda, mas principalmente Cobain. Avesso as conseqüências de ter vendido centenas de milhares de discos por todo o mundo, a idéia agora era fazer um disco que não desse continuidade a Nevermind, um disco sujo, que voltasse às origens. Não à toa Steve Albini foi chamado para produzir o então intitulado "I hate myself and I wanna die". Responsável pelo discos como "Surf Rosa", primeiro do Pixies, Albini produzira também Breeders, Tad e PJ Harvey. Conhecido por seu desapego a indústria fonográfica, ele seria o produtor que não faria a banda gravar um novo Nevermind e, principalmente, um novo "Smells like teen Spirit". Ou seja, exatamente o que a banda - principalmente Kurt - queria.

Apesar dos ataques de depressão, crises de choro e crises criativas de Cobain, a gravação de In Utero foi feita em pouco mais de dez dias. Seco, direto e sincero, In Utero é quase como um desabafo, e não precisa ser nenhum gênio para prever que a Geffen - gravadora da banda - não iria gostar do resultado de um trabalho como este. Após intensas discussões, o primeiro passo foi convencer a banda a mudar o título do álbum. "I hate myself and I wanna die" era um título muito forte, que causaria um certo mal estar no mercado. Convencido não só pelos executivos, mas também pelos companheiros de banda, Cobain cedeu e intitulou o disco de "In Utero", deixando o humor ironico do antigo título de lado. O segundo, e mais complicado passo, foi encontrar em meio aquelas canções um ou duas que poderiam ser os singles que levariam o álbum. Dentre todas, "Heart-Sharped Box" e "All Apologies" foram as escolhidas, e receberam um toque de Scott Litt, produtor do R.E.M, para torná-las mais acessíveis - entende-se aqui que as músicas levaram o chamado "banho de mesa", processo pela qual ela é "limpa" das sujeiras propositalmente deixadas pela banda durante sua gravação.

Em setembro de 1993 "In Utero" chegou às lojas, não vendendo tanto como Nevermind, mas alcançando ao topo das paradas muito mais rápido, afinal, o lançamento deste disco era mais do que esperado. Os pouco mais de quarenta minutos de crueza não agradaram muito aos que tinham o disco anterior como base de comparação. Além disso, muitas lojas proibiram a venda do disco devido ao título de uma das músicas ser "Rape me" ("Estupre-me"), só liberando as prateleiras quando o título foi trocado por "Waif me". Cheio de contravenções, ironias e sinceridades, "In Utero" é recheado, principalmente, de boas canções. Fugindo da fórmula que consagrou Nevermind, a auto-sabotagem de Cobain foi algo que a banda teve que lutar de tempos em tempos durante as gravações. As canções poderiam ser cruas ou diretas, mas não precisavam ser ruins, ou melhor, propositalmente ruins. Há alguns erros intencionais, como em "Frances Farmer will have her revange on Seatlle", onde uma nota escorregada serve para mostrar que somos tão humanos como Frances Farmer (atriz que foi internada num hospício), logo, suscetíveis a erros como ela, mas nada que possa comprometer o disco. Muito pelo contrário, diga-se de passagem.

Logo na abertura, a dissonância da primeira nota diz 'o disco é isso, esqueça o Nirvana verso-refrão-verso de Nevermind'. "Serve the Servents" é uma das canções mais autobiográficas do disco, pois versos como "I tried har to have a father but instead I had a dad" deixam transparecer a relação conflituosa de Kurt com Don Cobain, seu pai. Ainda no âmbito familiar, o refrão desta mesma música diz que "that legendary divorce is such a bore", retratando a influência do divórcio dos pais na vida do músico. Seguindo com o peso e as microfonias, há ainda "Frances Farmer will..." - que, como dito, é uma homenagem a Frances Farmer, atriz de Seatlle que alcançou certa fama em hollywood na década de 30, mas após isso passou por diversos hospitais psiquiátricos, se tornando uma espécie da obsessão de Kurt - "Very Ape", "Milk it" e "Radio Friendly Unit Shifter" - todas completamente dissonantes e estranhas numa primeira audição, teriam espaço garantindo no primeiro trabalho da banda -, além de "Tourette's" - música escrita e composta com base numa doença conhecida como "Síndrome de Tourrete", na qual seus portadores incontrolavelmente distribuem palavrões e resmungos.

Não menos pesadas, mas possuidoras de harmonias mais comuns, estão "Scentless Apprendice" - baseada no romance de Patrick Süskind chamado "O Perfume". A música se originou de uma linha de bateria composta por Dave Grohl, que, por sinal, é a mesma da introdução da música -, os singles de trabalho "Heart-Sharped Box" e "All Apologies", a balada "Dumb" - uma das letras mais comoventes já escrita por Kurt ao longo de sua carreira -, e "Pennyroyal Tea", talvez uma das músicas mais pesadas do disco, já que "pennyroyal" é um chá abortivo, e a letra - assim como o restante do álbum, inclusive seu título - pode ser encarada como uma necessidade de Kurt a voltar a ser bebê e evitar todo o sofrimento pelo qual vinha passando. O chá em questão o traria morto ao mundo. Além destas, há a controversa "Rape me", na qual a introdução propositalmente remete a "Smells like...", a fim de chamar a atenção do ouvinte à letra, que, conforme ressaltado pela banda no vídeo "Live, tonight, sold out", é anti-estupro.

Uma curiosidade do disco é a faixa fantasma (crediatada na edição nacional) "Gallons Of Rubbing Alcohol Flow Through The Strip", gravada nos estúdios da BMG Ariola, no Rio de Janeiro, quando da passagem da banda aqui no Brasil para o Hollywood Rock, em 1993. Outra curiosidade é que foi neste disco a primeira vez que Kurt dividiu a composição das músicas. Na verdade, foi apenas uma música, "Scentless Apprendice", creditada a Krist Novoselic e Dave Grohl, além de Kurt Cobain. Este fato demonstrava que a crise criativa de Cobain estava começando a se acentuar, e não à toa ele já começava a remexer em velhos rasunhos atrás de idéias. Ou seja, a famosa passagem de sua carta de suicício ("I haven't felt the excitement of listening to as well as creating music along with reading and writing for too many years now.") começava aqui.

O ponto é que, além de todas as controvérsias que rondam não apenas este disco, mas quase a discografia inteira, "In Utero" é um passo, o penúltimo da carreira de uma das bandas que marcaram a música na década de noventa. E talvez a primeira versão da carta de despedida de Kurt Cobain.